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Os flamboyants e a paciência oriental

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Ontem à tarde estava em busca de um conserto especializado para o carro, mas quem me indicou só sabia o nome da rua, uma tripa longa e sinuosa no meio de um bairro da zona leste. Talvez houvesse no letreiro alguma descrição do serviço que eu buscava, assim percorri todo o trajeto da rua nessa procura um pouco às cegas, olhando cada letreiro e cada rua transversal.

E foi em uma dessas ruas que me vi de repente levada a um momento, uma experiência encantadora, que vivi há mais de 35 anos. Reconheci as árvores flamboyants plantadas em uma das laterais da rua, que, hoje frondosas, eram na época já altas, mas ainda frágeis, e não chegavam a sombrear toda a rua, como o fazem agora.

Minha mãe, ainda muito serelepe e vivaz, o amigo fotógrafo Miura, e eu chegamos nessa rua na busca de uma professora de ikebana, uma senhora japonesa que alguém havia indicado. Do pequeno portão na entrada avistamos o jardim oriental com uma lápide de granito preto que continha algumas inscrições em ideogramas japoneses. A conversa foi curta, se me lembro, ficamos ali no jardim com o filho dela ao lado, fazendo a tradução.

Hoje só ficaram na memória duas coisas. Uma que ela nos disse que não gostava de dar aulas de ikebana para brasileiros, pois não temos paciência. A outra foi na saída, quando perguntamos sobre os flamboyants, tão perfeitamente alinhados na rua, e ela contou que haviam sido plantados pelo marido já falecido. E encerrou dizendo que ele sabia que as árvores dariam beleza e sombra a quem vivesse ali ou passasse pela rua.

Ontem, ao reencontrar os flamboyants sólidos e soberbos, essas lembranças vieram à tona. Claro que, como jornalista curiosa, não resisti e apertei a campainha da casa que ainda lá está. O jardim oriental, a lápide com os ideogramas, o pequeno portão, e uma senhora com traços orientais veio me atender. A princípio meio suspeita, mas quando lhe contei a história, percebi que ficou feliz em conversar um pouco.

A professora de ikebana era a sua sogra, e morreu há mais de dez anos. A família toda cresceu, os netos foram ali criados e brincaram muito sob a sombra dos flamboyants. As aulas de ikebana continuam sendo ministradas por uma professora, também japonesa, em algum lugar da cidade. Nesses anos todos só pararam agora, na pandemia. Mas vão voltar, com certeza, me disse Rosa, a nora.

Saí de lá comovida com o coração feliz por lembrar e reviver aquele momento. Senti que o tempo se retorcia e criava galhos fortes, folhas vivas, e flores vibrantes. Minha mãe, o amigo Miúra, a professora de ikebana, e o plantador de flamboyants estavam todos ali, enraizados em mim.

Observei que no lado da rua onde estão os flamboyants existem hoje prédios residenciais e, com isso, as árvores foram podadas de um lado, e jogaram toda sua força e energia para o lado oposto, o lado que dá sombra à rua.

Penso que, como essas árvores, temos que ceder, nos curvar, abrir caminhos, contornar obstáculos, e ter paciência, mas sempre em busca da luz.

24-11-2020

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