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Por onde andam as ovelhas negras

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Minha filha pintou o cabelo de rosa, não um rosinha claro, sutil, mas rosa choque, daqueles de doer na vista. Quis me mostrar em primeira mão, por foto, já que estamos separadas pela pandemia. Reagi medianamente como convém a uma mãe não muito conservadora, mas também não tão progressista. Pela terminologia que anda na moda, devo ser uma isentona com recaídas para a esquerda e para a direita, igual joão-bobo, sempre na tentativa, nem sempre bem sucedida, de encontrar o prumo e o rumo.

O cabelo rosa me fez lembrar das ovelhas negras, desgraças de muitas famílias de “bom nome”, que povoaram minha vida da infância à juventude. Algumas me cercavam, como minha mãe, definitivamente uma ovelha negra na família e na cidade pequena onde morava. 

Foi castrada de suas vontades desde pequena, quando sonhou em juntar-se a uma trupe de circo que andou pela cidadezinha de Minas onde ela morava. Quis estudar e não deixaram, nem completou o então curso primário. Descontava nas leituras de todos os livros que caiam em suas mãos. Até pouco antes de morrer orgulhava-se quando dizia que lia ao menos um livro por semana. Depois casou-se com um ex-padre, meu pai, na esperança de ser levada para fora dali, do crochê, da cozinha e da espera por um casamento com algum fazendeiro rico. Buscou a vida toda ser uma libertária com as ferramentas que a vida lhe deu.

Na adolescência encontrei ovelhas negras na literatura, como Helena Blavatsky e Simone de Beauvoir, que me ofereceram as primeiras leituras sobre uma mulher que deixa tudo em busca de uma jornada interior, e outra que escreve sobre filosofia, política e feminismo. Também tive amigas, mães solo por opção, homoafetivas, livre pensadoras, jornalistas, artistas e cientistas. Tomar o rumo dessas opções nas décadas de 1960 e 1970 ainda era uma via tortuosa para mulheres que só o faziam porque não suportavam viver sob o jugo de ideias preconcebidas, de costumes enjaulados para as enquadrar no infalível roteiro das brincadeiras com bonecas, até o suplício de casamentos infelizes.

Hoje muitos caminhos estão abertos e encontrar espaço para exercitar o livre pensamento e a liberdade de costumes tornou-se mais possível, ainda que continue difícil romper com modelos e enquadramentos. Ser ovelha negra e destacar-se como tal não é tão fácil em um mundo que se pinta de tantas cores, que professa tantos credos, mas que se limita à dualidade no pensamento. É como se houvesse aberto um caminho aparentemente livre, mas que constrange o caminhar por vias vicinais, onde é possível o encontro com o inusitado, o novo, o revolucionário, o que rompe paradigmas.

As ovelhas negras correm riscos permanentes. Entre elas encontram-se as que não seguem líderes dogmáticos, não produzem textos recheados de citações de terceiros, não acreditam em verdades definitivas.

Fecho aqui de onde comecei, do cabelo rosa, à escolha de uma senadora afrodescendente como candidata a vice-presidente dos Estados Unidos. Com toda consciência sobre a desproporcionalidade dos exemplos, vejo que a semente das ovelhas negras está por aí, na coragem de ser e acertar o passo um a um por estradas vicinais, até chegar à via principal com novas ideias e ideais.

P.S. – A montagem com as fotos mostra as moças de cabelo rosa, de cabelo crespo (eu na mesma idade de minha filha hoje), e as ovelhas negras de peso, Simone de Beauvoir e Helena Blavatsky. Assim cumpro meu desejo de estar ao lado delas.

13/08/2020

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